Isso é um poema ou uma navalha?
Difícil
a pessoa passar pela vida sem cometer poesia. Aquela paixãozinha, aquele
namorico desfeito, aquela dor de cotovelo deixam a gente desamparado. E como
psicanalista está caro e nem sempre fica bem buscar o consolo da mamãe, a gente
corre depressa pro colo quente da poesia, fazendo uns versinhos que não
conseguem ultrapassar os estreitos limites do eu apaixonado, do eu angustiado,
do eu ferido. Para a maioria das pessoas, poesia é coisa que dá e passa,
principalmente na adolescência. Raros são aqueles que conseguem romper o exíguo
círculo traçado em redor de si para entrar no terreno da verdadeira poesia. A
quase totalidade das pessoas que faz “poesia” julga que ser poeta é fácil. Um
pouquinho de sentimento, uma frase iniciada com letra maiúscula, outras frases
colocadas abaixo da primeira e ponto final. Pronto. Fiz um
poema. Poeta que é poeta saque que fazer poesia não é mole mas
consegue escrever um poema até quando a inspiração está efervescente
no intestino e “não quer sair”. Preste só atenção em Drummond .
“Gastei
uma hora pensando um verso
que
a pena não quer escrever.
No
entanto ele está cá dentro
inquieto,
vivo
e
não quer sair.
Mas
a poesia deste momento
inunda
minha vida inteira”.
Eis
aí o Estado de Poesia, comoção lírica todos nós temos pelo menos uma vezinha na
vida. Transformá-los em verdadeiros poemas é que são elas. Artur
Gomes começou, como todo mundo, fazendo seus versinhos, mas desde o
início, revelou um pendor incomum. A poesia para ele , era compromisso e não
diletantismo ou fuga. Bem cedo, suas antenas sensíveis perceberam as misérias
do mundo, particularmente as do em que ele vive, o terceiro. Sem armas brancas
ou de fogo, impossibilitado de se transformar em guerrilheiro, ele fez da
poesia, uma arma que cada dia afia mais.
Terceiro
mundista, brasileiro e malandro, ele não quis saber de espada, cimitarra,
alfanjes, floretes, sabres e alabardes para travar suas lutas. Em vez, preferiu
a navalha que corta frio e fino, sem que a gente perceba, até o sangue começar
a escorrer. E sua marca não sai mais. Os poemas de Artur Gomes cortam
feito navalha e deixam uma cicatriz indelével que nem plástica remove.
Implacável e habilidoso no manejo da sua arma , ele arremete contra os
fabricantes de injustiças. Sua poesia revela preocupações sociais, políticas e
ecológicas, não poupando os mitos forjados pela história. Além de contestador,
iconoclasta.
Não
se pense, porém que Artur Gomes vive mergulhado em profunda
amargura. Ele sabe cantar também os prazeres do amor, do erotismo, a luxúria do
ambiente tropical e o goso pela vida. Sua poesia é também resistência à
desfiguração cultural do nosso país. Nem se pense também que a poesia em suas
mãos, se reduz a um instrumento de protesto. Conquanto crítico e preocupado com
o social, o político, e o ecológico, Artur Gomes demonstra
também uma grande preocupação com questões técnicas. Artista, ele também é
artesão. Trabalha seus poemas à exaustão, procura explorar as possiblidades da
palavra e o suporte físico da página. Faz experiências no campo do concretismo,
construindo poemas com palavras decompostas que só podem ser inteiramente
compreendidas visualmente: a pá lavra; re-par-tiu-se. Eis
dois exemplos. Mas é fundamentalmente para o ouvido que se destinam os seus
poemas. O espaço em que faz zunir e reluzir a sua navalha é sonoro e musical. O
tempo passa e os poemas de Artur Gomes tornam-se cada vez mais musicais e
ritmados.
Outro
traço que se acentua na evolução do seu trabalho: a concisão. A cada livro
publicado, nos deparamos com um poeta sempre mais econômico. Na linha de
um Oswald de Andrade e de José Paulo Paes, ele
escreve poemas curtos, enxutos, incisivos, que ferem como
o diabo. Não rompe com a rima e com a métrica, mas não se deixa
aprisionar por elas. Ambas estão presentes o tempo todo em seu trabalho sem que
se possa garantir que não sejam ocasionais. A rima, por exemplo quando rompe,
traz um efeito inusitado. Tanque rima com ianque, parque rima
com dark. E aqui há outro aspecto digno de
registro: Artur Gomes incorpora as novidades, mas nunca fica
deslumbrado com elas. É moderno muitas vezes experimentalista, mas respeita a
tradição. Não sei de suas leituras, mas deve tomar bênção aos clássicos. Não
rompe com a métrica, com a rima e com a estrutura do poema, mas não
cai na poesia convencional. É agressivo, mas não perde nunca de vista o sentido
maior da poesia. Isso não quer dizer, em contrapartida, faça arte pela arte,
mas muito menos significa que se deixa envolver nas facilidades da poesia de
protesto feita sob encomenda.
O
poeta está aí, inquieto, equilibrando-se na corda bamba. Pode começar a ler os
seus poemas, leitor. Agora se você faz parte daquele grupo de pessoas que tiram
partido da miséria e destruição, tome cuidado com Couro Cru & Carne
Viva. Os poemas navalha de Artur Gomes certamente
não terão piedade de você.
Aristides
Arthur Soffiati
Campos,
agosto de 1987
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