domingo, 19 de março de 2023

Artur Gomes

 Artur Gomes, um poeta campista no palco da memória


por Deneval Siqueira

Artur Gomes é poeta de longa ancestralidade e forte techné, e sempre nos brinda com sua poíesis de tom ritmado na pesada musicalidade de herança oral. Campista goitacá, em breve, lançará, O Poeta enquanto Coisa, cuja Psicótica – 67 transcrevo abaixo.

Psicótica – 67
com os dentes cravados na memória

não frequento academias
físicas – e muito menos literárias
minha palavra avária
está à beira do precipício
nem sei porque não continuei
internado no hospício
onde choques elétricos aconteciam as tantas
no manicômio Henrique Roxo
na cidade de Campos dos Goytacazes
onde a medicina psiquiátrica
era exercida por capatazes de médicos açougueiros
e um Capixaba de nome Vespasiano
não resistiu ao surto
explodiu a cabeça contra a parede
e nenhum jornal da cidade
noticiou o suicídio
que eu trago na lembrança
com os dentes cravados na memória

Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa

Tendo como marca registrada da sua obra o palimpsesto e o intratexto, onde se confundem a voz do eu-lírico, refundado na memória dos jornais, do noticiário policialesco, na jornada absurda da crueldade a la Antonin Artaud e salpicada de telurismo, sua poética vem sobressaltar os menos avisados.

Retomando alguns traços de Jorge de Lima e Ana Cristina César, não fica no passado mnemônico, pois seu traço lírico principal é do poeta memorialista cultural e telúrico, de perfil universalista, pois joga com o absurdo e com a persona teatral, desfazendo-se da loucura qualquer que seja, pois trabalha a arte do poema com desvario lírico musical a la Bethoven, a la Wagner, compondo uma ópera do absurdo nas memórias subjacentes.

O percurso de Artur Gomes é muito interessante e enriquece a historiografia dos poetas brasileiros contemporâneos, assim como Adriano Moura, Flávia D’Ângelo, entre outros não publicados ainda.

Vale a conferida. Estamos todos aguardando o livro de poemas O Poeta Enquanto Coisa (2019) , título que sugere a materialização da memória no poema, de grau cabralino, e que segundo o autor-poeta “o instante que nos obriga a ser memorialistas”. Certo. A memória não perdoa, ela finca a faca no peito do leitor, sem sangue, mas cheia de feridas.

Deneval Siqueira
Pós-Doutor e professor Titular de Teoria e História Literária
Centro de Ciências Humanas e Naturais
Programa de Pós-graduação em Letras - Doutorado e Mestrado em Estudos
Literários da UFES


devorável


mais uma vez te venho
porque com essa flecha
que me acerta o peito
teu coração me devora
e me desfaz na pétala
como o vôo de um colibri
velocidade de um beija-flor
tire o seu pircing do caminho
que eu quero passar com meu amor

Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa

www.secretasjuras.blogspot.com


ancestral


há muito tempo não recebo cartas de ninguém
mas não rezo padre nossos

simplesmente para dizer amém

já fui católico rezei terços ladainhas
acompanhei a procissão dos afogados
na Tapera para soletrar a palavra Cacomanga
e entender que o barro da cerâmica
trago grudado na minha íris retina

meu batismo de fogo foi numa Santa Cecília
entre víboras e serpentes
mordi a hóstia do padre
sua saia preta me levou ao pânico

de sonhar com juízes e hoje saber o que são

minha África são os olhos negros
de Madame Satã
na língua tenho uma sede felina
na carne essa fome pagã
sou um homem comum
filho de Ogum com Iansã

Artur Gomes

O Poeta Enquanto Coisa

Editora Penalux – 2020

www.secretasjuras.blogspot.com

sexta-feira, 17 de março de 2023

pluma

 

pluma

a pluma é leve
flutua no ar com simples sopro
o amor também é leve
levita no ar sobre teu corpo
o que sei dele ainda é pouco
por isso procuro feito um louco
como se estivesse em minhas mãos
mas não está.

Artur Gomes

www.fulinaimagens.blogspot.com

fluxus

 

Fluxus

como uma flor de lótus
ela se abriu entre a lua e o girassol
deixou meus lábios molhados
os olhos alvoroçados
por tanta delicadeza
talvez até fosse tigresa
mas mora em mim a certeza
que és felina Leoa
e me faz tua presa
me trans/bordando em pessoa

Artur Gomes

www.fulinaimagens.blogspot.com


oswald de andrade

 Espelho


o sol quebrou a barra
hoje de manhã
no espelho uma maçã
em carne e osso
a carne exposta a mesa
na fruteira
ali meus dentes
e os ponteiros do relógio
que não param
meus olhos atravessados
ela nua
e a língua sedenta
do teu sexo

Oswald de Andrade 

 

federika lispector

 

provocAção

frente ao espelho
estou quase sempre nua
como cheguei ao mundo
de bunda pra lua

Federika Lispector

www.personasarturianas.blogspot.com


gigi mocidade

 

frente ao espelho
não preciso de disfarce
mostro a minha cara
que tem sempre a mesma face

Gigi Mocidade

www.porradalirica.blospot.com


poema do terceiro dia

 

poema do terceiro dia

remover a pedra dos rins
a faca dos dentes
a escama seca da espinha da serpente
retirar da carne o sal que restou do mar
e me mandar para outras águas
de preferência água doce
antes que o mar me salgue
antes que o mar me cegue
peço a Oxum que me leve
por onde eu ainda possa me salvar

Artur Gomes

www.fuliaimagens.blogspot.com

jura secreta 14

                            Artur Gomes

Jura Secreta 14

Juras Secretas

Editora Penalux – 2018

 


com um prazer de fera



com um prazer de fera

e um punhal de amante

na cachoeira da fumaça

do espírito santo

eu canto tua carne viva

em minha pele crua

moenda

Moenda

 

usina

    mói a cana

    o caldo

    e o bagaço

 

usina

    mói o braço

    a carne

    o osso

 

usina

    mói o sangue

    a fruta

    e o caroço:

 

tritura suga torce

dos pés até o pescoço

 

e do alto da casa grande

os donos do engenho

controlam o saldo e o lucro

 

Artur Gomes

www.fulinaimagens.blogspot.com

quinta-feira, 16 de março de 2023

Geleia Geral - Rádio Caiana

 

Hoje às 20h

Geleia Geral

Rádio Caiana

www.radiocaiana.com.br

 

Gravamos ontem com Paulo André Netto Barbosa o primeiro Geleia Geral com participação especialíssima da minha querida amiga parceira Marcella Roza cantando à capela Vapor Barato (Jards Macalé/Wally Salomão).

Além de uma seleta musical com meus parceiros Paulo Celso Ciranda Reubes Pess Otávio Cabral Naiman e Luiz Ribeiro e duas faixas com poesia e som instrumental de Fil Buc fluiu ainda um breve bate papo focado na minha trajetória desses 50 anos de poesia. Esse programa de estreia vai ao Ar hoje às 20h.


segunda-feira, 13 de março de 2023

Suor & Cio

 

Filipe

 

filho de poeta

faz da terra

água e pão

 

dilata músculos

do pai

clarei ventre

da mãe

retesa nervos

das mãos

 

encharca vazos

do corpo

transborda veias

do chão


tecidos sobre a terra 


terra

 

antes que alguém morra

escrevo prevendo a more

arriscando a vida

antes que seja tarde

e que a língua da minha boca

não cubra mais tua ferida


II

 

entre/aberto

em teus ofícios

é que meu peito de poeta

sangra ao corte das navalhas

e minha veia mais aberta

é mais um rio de que espalha


III

 

terra, o que me dói

é ter-te devorada

por tantos olhos

   e deter impulsos

por fidelidade


urbanus

 

debruçam no meu peito

sinais de sinhôs, marcas

de fracasso

 

trafega entre meus dentes

vinhoto nas gengivas

salivas no bagaço

 

entre os bueiros

do meu ventre

coração em carne viva

sangra do homem

seus pedaços


utopia

 

ó terra incestuosa

de prazer e gestos

não me prendo ao laço

dos seus comandantes

 

só me enterro à fundo

nos teus vagabundos

com um prazer de fera

e um punhal de amante


campos

 

levo-te nas entranhas

fuligem ferro pó

e o ódio declarado da usinas

injetado nas veias

até os ovos

 

nos olhos:

a visão encarnecida

do rufo dos chicotes

na cara e no suor

 

levo-te escrava

na certeza de não mais

sangrar em teus aceiros

ou enterrar-me até os ossos

em teus canaviais


moagem

 

na orgia verde

de uma nova safra

o homem lavra

:

a esperança atenta

nos lençóis de palha


engenho

 

minha terra

é de senzalas tantas

enterra em ti

milhões de outras esperanças

 

soterra em teus grilhões

a voz que tenta – avança

plantada em ti

como canavial

que a foice corta

 

mas cravado em ti

me ponho à luta

mesmo sabendo – o vão

 - estreito em cada porta 

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