por Deneval Siqueira
Artur Gomes é poeta de longa ancestralidade e
forte techné, e sempre nos brinda com sua poíesis de tom ritmado na pesada
musicalidade de herança oral. Campista goitacá, em breve, lançará, O Poeta
enquanto Coisa, cuja Psicótica – 67 transcrevo abaixo.
Psicótica – 67
com os dentes cravados na memória
não frequento academias
físicas – e muito menos literárias
minha palavra avária
está à beira do precipício
nem sei porque não continuei
internado no hospício
onde choques elétricos aconteciam as tantas
no manicômio Henrique Roxo
na cidade de Campos dos Goytacazes
onde a medicina psiquiátrica
era exercida por capatazes de médicos açougueiros
e um Capixaba de nome Vespasiano
não resistiu ao surto
explodiu a cabeça contra a parede
e nenhum jornal da cidade
noticiou o suicídio
que eu trago na lembrança
com os dentes cravados na memória
Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa
Tendo como marca registrada da sua obra o
palimpsesto e o intratexto, onde se confundem a voz do eu-lírico, refundado na
memória dos jornais, do noticiário policialesco, na jornada absurda da
crueldade a la Antonin Artaud e salpicada de telurismo, sua poética vem
sobressaltar os menos avisados.
Retomando alguns traços de Jorge de Lima e Ana
Cristina César, não fica no passado mnemônico, pois seu traço lírico principal
é do poeta memorialista cultural e telúrico, de perfil universalista, pois joga
com o absurdo e com a persona teatral, desfazendo-se da loucura qualquer que
seja, pois trabalha a arte do poema com desvario lírico musical a la Bethoven,
a la Wagner, compondo uma ópera do absurdo nas memórias subjacentes.
O percurso de Artur Gomes é muito interessante e
enriquece a historiografia dos poetas brasileiros contemporâneos, assim como
Adriano Moura, Flávia D’Ângelo, entre outros não publicados ainda.
Vale a conferida. Estamos todos aguardando o livro
de poemas O Poeta Enquanto Coisa (2019) , título que sugere a materialização da
memória no poema, de grau cabralino, e que segundo o autor-poeta “o instante
que nos obriga a ser memorialistas”. Certo. A memória não perdoa, ela finca a
faca no peito do leitor, sem sangue, mas cheia de feridas.
Deneval Siqueira
Pós-Doutor e professor Titular de Teoria e
História Literária
Centro de Ciências Humanas e Naturais
Programa de Pós-graduação em Letras - Doutorado e
Mestrado em Estudos
Literários da UFES
mais uma vez te venho
porque com essa flecha
que me acerta o peito
teu coração me devora
e me desfaz na pétala
como o vôo de um colibri
velocidade de um beija-flor
tire o seu pircing do caminho
que eu quero passar com meu amor
Artur Gomes
O
Poeta Enquanto Coisa
www.secretasjuras.blogspot.com
há muito tempo não recebo cartas de ninguém
mas não rezo padre nossos
simplesmente para dizer amém
já fui católico rezei terços ladainhas
acompanhei a procissão dos afogados
na Tapera para soletrar a palavra Cacomanga
e entender que o barro da cerâmica
trago grudado na minha íris retina
meu batismo de fogo foi numa Santa Cecília
entre víboras e serpentes
mordi a hóstia do padre
sua saia preta me levou ao pânico
de sonhar com juízes e hoje saber o que são
minha África são os olhos negros
de Madame Satã
na língua tenho uma sede felina
na carne essa fome pagã
sou um homem comum
filho de Ogum com Iansã
Artur Gomes
O
Poeta Enquanto Coisa
Editora
Penalux – 2020