terça-feira, 5 de março de 2024

juras secretas

 

Juras Secretas 

feitiçarias de Artur Gomes - por Michèle Sato 

Difícil iniciar um prefácio para abordar feitiçarias de um grande mestre. A mágica aparição do texto transborda sentidos cósmicos, como se um feixe de luz penetrasse em um túnel escuro dando-lhe o sorver da vida. Diariamente, recebo um deserto imenso de poemas e a leitura se esvai com “batatinha quando nasce põe a mão no coração”. Um ou outro me chama a atenção, desde que sou do chamado “mundo das ciências” e leio poemas com coração, mas inevitavelmente aguçado pelo olhar crítico vindo do cérebro. 

A academia pode ser engessada, mas é, sobremaneira, exigente. Aplaude o inédito, reconhecendo que o poema é um caos antes de ser exteriorizado, mas harmônico, quando enfeitiçado. A leitura requer algo como canto do vento, que não seja fugaz, mas que acaricie no assopro da Terra. Por isso, é com satisfação que inicio este pequeno texto, sem nenhuma pretensão de esgotar o talento do grande mestre, mas responder aos poemas de Artur que brilham, soltam faíscas, incendeiam-se em erotismo e garras enigmáticas. Ele transcende regras, inventa palavras, enlouquece verbos. E as relações estabelecidas revelam a desordem dos sonhos na concretude harmônica de suas palavras. 

A aventura erótica não se despede de seu olhar político. Situado fenomenologicamente no mundo, e transverso nele, Artur profana o sagrado com suas invenções transgressoras. Reinventa a magia e decreta uma nova vida para que o mundo não seja habitado somente pelos imbecis. Dança no universo, com a palavra fluída, imprevistos pitorescos, mordidas e grunhidos. Reaparece no meio de um cacto espinhoso, mas é absurdamente capaz de ofertar a beleza da flor. Contemporâneo e primitivo se aliam, vencem os abismos como se ao comerem as palavras monótonas, pudessem renascer por meio da antropofagia infinita de barulhos e silêncios. O sangue coagulado jorra, as cavernas se dissolvem e é provável que poucos compreendam a beleza que daí se origina. 

Nos labirintos de suas palavras, resplandece o guerreiro devorador, embriagado, quase descendo ao seu próprio inferno. Emana seu fogo, na ardência de sexo e simultaneamente na carícia do amor. Pedras frias se aquecem, coram com o tom devasso que colore a mais bela das pornofonias. Marquês de Sade sente inveja por não ser o único déspota das palavras sensuais. E os poemas de Artur reflorescem, exalam odor como desejos secretos e risos que ecoam no infinito. 

não fosse essa alga queimando em tua coxa ou se fosse e já soubesse mar o nome do teu macho o amor em ti consumiria (jura secreta 5) 

De repente um cavalo selvagem cavalga na relva úmida, como se o orvalho da manhã pudesse revelar o fogo roubado das pinturas rupestres. Ao som de tambores, suas palavras se tornam arte em si, como se fossem desenhos projetados em um fantástico mundo vertiginoso. Seres encantados surgem das águas originários de sentimento, abraçadas nas pedras lisas, rugosas, esverdeadas da terra. O fogo dança em vulcões e a metamorfose é percebida em seus ares. Os elementos se definem como bestas, humanos, ou segmentos da natureza como uma orquestra sinfônica que vai além da sonoridade. Adentram sentidos polissêmicos e, neste momento, até o André Breton percebe o significado das palavras de Artur, pois a beleza é convulsiva e crava no peito feito cicatriz. 

e o que não soubesse do que foi escrito está cravado em nós como cicatriz no corte (jura secreta 10) 

Da violação do limite, do fruto proibido ou da linguagem erótica, os poemas de Artur são orgasmos literários que oscilam entre o sacro e o profano. Sua cultura, visão de mundo e inteligência possibilitam ir além da pura emoção sentimental, evocando a liberdade para que a terra asfixiada grite pela esperança. Artur comunga com outros seres a solidariedade da Terra, ainda que por vezes, seja devastador em denunciar disparidades, mas é habilidoso em anunciar acalentos. A palavra poética desfruta fronteiras, e Roland Barthes diria que a história de Artur é o seu tributo apaixonado que ele presta ao mundo para com ele se conciliar. Em sua linguagem explosiva, provavelmente está a intensidade de sua paixão - um amor perverso o suficiente para viciar em suas palavras, mas delicado o bastante para dar gênese ao mundo enfeitiçado pela habilidade de sua linguagem. 

A essência deste perfume parece estar refletida num espelho, pois se as linguagens podem incluir também o silêncio, as palavras de Artur soam como uma melodia. Projetada numa tela, a pintura erótica torna-se sublime e para além de escrevê-las, ele vive suas linguagens. Esta talvez seja a diferença de Artur com tantos outros poetas: a sua capacidade de transcender a tradição medíocre para viver um intenso de mistério de sua poética. Ele não duvida de suas palavras, nem as censura para não quebrar seu encanto, mas devora em seu ser na imaginação e no poder de sua criação. Criador e criatura se misturam, zombam da vida, gargalham da obviedade. Põem-se em movimento na dança estrelas que iluminam a palavra. 

Os fragmentos poéticos são misteriosos de propósito, uma cortina mal fechada assinala que o palco pode ser visto, porém não em sua totalidade. Disso resulta a sedução para que ele continue escrevendo, numa manifestação enigmática do poder surrealista em nos alertar sobre nossas incompletudes fenomenológicas. O imperfeito é o sentido da fascinação, diria Barthes em seus fragmentos de um discurso amoroso. E a poética de Artur não representa ressurreição, nem logro, senão nossos desejos. O prazer do texto pode revelar o prazer do autor, mas não necessariamente do leitor. Mas Artur lança-se nesta dialética do desejo, permitindo um jogo sensual que o espaço seja dado e que a oportunidade do prazer seja saciada como se fosse um "kama sutra poético" para além do prazer corporal. Esta duplicidade semiológica pode ser compreendida como subversiva da gramática engessada - o que, em realidade, torna seus textos mais brilhantes. Não pela destruição da erudição, mas pela abertura da fenda, para que a fruição da linguagem seja bandeira cultural da liberdade. 

E a sua liberdade projeta-se num horizonte onde a dimensão sócio-ambiental é freqüentemente presente. É uma poesia universal de representações urbanas e rurais, de flora, fauna e fontes de praças públicas. Desacralizando o “normal previsível”, borda em sua costura de mosaicos, esquinas e passaredos. 

A poética das Juras Secretas opõem-se a instância pretérita numa espiral de presente com futuro. Metafisicamente, desliga-se do momento agonizante e os olhos do poeta não se cansam, ainda que a paisagem queira cansá-los. Seu toque lembra o neoconcretismo, por vezes, cuja aparição na semana da arte moderna mexeu com os mais tradicionais versos da literatura ordinária. Mas sua temporalidade vence Chronos, na denúncia de um calendário tirano ao anúncio de Kairós, também senhor do tempo, mas que media pelos ritmos do coração. 

20 horas 20 noites 20 anos 20 dias até quando esperaria... até quando alguém percebesse que mesmo matando o amor o amor não morreria. (jura secreta 51) 


É óbvio que a materialidade da linguagem, sua prosódia e seu léxico se mantêm no texto. Mas foge das estruturas engessadas do arrombo repetitivo, florescendo em neologismos verossímeis e ritmos cardíacos. Amiúde, são palavras jorradas em potente cultura significante. No chão dialogante, este poeta desestabiliza a normalidade com suas criações. 

por que te amo e amor não tem pele nome ou sobrenome não adianta chamar que ele não vem quando se quer porque tem seus próprios códigos e segredos mas não tenha medo pode sangrar pode doer e ferir fundo mas é razão de estar no mundo nem que seja por segundo por um beijo mesmo breve por que te amo no sol no sal no mar na neve. (jura secreta 34) 

ARTUR GOMES é, para mim, um grande relato de seu próprio devir, que sabe poetizar a partir de seu vivido. E por isso, enfeitiça. 

 

Michèle Sato – Bióloga, pesquisadora na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.


Jura Secreta 

não fosse essa jura secreta 
mesmo se fosse e eu não falasse 
com esse punhal de prata 
o sal sob o teu vestido 
o sangue no fluxo sagrado 
sem nenhum segredo 

esse relógio apontado pra lua 
não fosse essa jura secreta 
mesmo se fosse eu não dissesse 
essa ostra no mar das tuas pernas 
como um conto do Marquês de Sade 
no silêncio logo depois do susto
 

 

 Jura secreta 1 


a língua escava entre os dentes 
a palavra nova 
fulinaimânica/sagarínica 
algumas vezes muito prosa 
outras vezes muito cínica 

tudo o que quero conhecer: 
a pele do teu nome 
a segunda pele o sobrenome 
no que posso no que quero 

a pele em flor a flor da pele 
a palavra dandi em corpo nua 
a língua em fogo a língua crua 
a língua nova a língua lua 

fulinaímica/sagaranagem 
palavra texto palavra imagem 
quando no céu da tua boca 
a língua viva se transmuta na viagem 

 

 Jura secreta 2 


não fosse esse punhal de prata 
mesmo se fosse e eu não quisesse 
o sangue sob o teu vestido 
o sal no fluxo sagrado 
sem qualquer segredo 

esse rio das ostras 
entre tuas pernas 
o beijo no instante trágico 
a língua sem que ninguém soubesse 
no silêncio como susto mágico 
e esse relógio sádico 
como um Marquês de Sade 
quando é primavera 

 

 Jura secreta 3 


fosse essa jura sagrada 
como uma boda de sangue 
às 5 horas da tarde 
a cara triste da morte 
faca de dois gumes 
naquela nova granada 
e Federico Garcia Lorca 
naquela noite de Espanha 
não escrevesse mais nada 

 

Jura secreta 4 

a menina dos meus olhos 
com os nervos à flor da pele 
brinca de bem-me-quer 
ela inda pensa que é menina 
mas já é quase uma mulher 

  


não fosse essa alga 
queimando em tua coxa 
ou se fosse e já soubesse 
mar o nome do teu macho 
o amor em ti consumiria 

Olga Savary 
no sumidouro dos meus dias 

o couro cru 
na antropofágica erótica 
carne viva 
tua paixão em mim 
voraz língua nativa 

 

Jura secreta 6 

o que passou não ficará já foi 
a menina dos meus olhos 
roubou a tua menina 
e levou para festa do boi 

fosse um Salgado Maranhão 
nosso batismo de fogo 
25 de março 
e o morro querosene  em chamas 
no canto pro tempo nascer 

e o amor que a gente faria 
o sol acabou de fazer 

 

 Jura secreta 7 


fosse Sampa uma cidade 
ou se não fosse não importa 

essa cidade me transporta 
me transborda me alucina 

me invade inter/fere na retina 
com sua cruel beleza 

como Oswald de Andrade 
e sua realidade 

como Mário de Andrade 
e sua delicadeza 


Jura Secreta 8

artefato (poema sujo)

 

numa cidade abstrata

sem sentido ou significado

matadouro é arte concreta

veracidade é pecado

pago com pena de morte

 

esta máquina de escrever

fotografada em Itaguara

como um poema de Lorca

escrito em Nova Granada

cravado em Araraquara

 

você não sabe onde está

você não sabe onde  é

você não sabe de quem foi

este punhal na metáfora

que sangra a carne do boi

 

 Jura secreta 9 


não fosse o teu amor 
o meu conforto 
e eu teu anjo torto 
meu amor como seria 

se a jura secreta 
não fosse mais que um poema 
e se eu não te amasse 
como Glauber no cinema 

o que tenho aqui 
no corpo em transe

:

a quem daria? 

 

Jura secreta 10 

fosse o que eu quisesse 
apenas um beijo roubado em tua boca 
dentro do poema nada cabe 
nem o que sei nem o que não se sabe 

e o que não soubesse 
do que foi escrito 
está cravado em nós 
como cicatriz no corte 
entre uma palavra e outra 
do que não dissesse 


     www.secretasjuras.blogspot.com

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