feitiçarias de Artur Gomes - por
Michèle Sato
Difícil iniciar um prefácio para abordar
feitiçarias de um grande mestre. A mágica aparição do texto transborda sentidos
cósmicos, como se um feixe de luz penetrasse em um túnel escuro dando-lhe o
sorver da vida. Diariamente, recebo um deserto imenso de poemas e a leitura se
esvai com “batatinha quando nasce põe a mão no coração”. Um
ou outro me chama a atenção, desde que sou do chamado “mundo das ciências” e
leio poemas com coração, mas inevitavelmente aguçado pelo olhar crítico vindo
do cérebro.
A academia pode ser engessada, mas é,
sobremaneira, exigente. Aplaude o inédito, reconhecendo que o poema é um caos
antes de ser exteriorizado, mas harmônico, quando enfeitiçado. A leitura requer
algo como canto do vento, que não seja fugaz, mas que acaricie no assopro da
Terra. Por isso, é com satisfação que inicio este pequeno texto, sem nenhuma
pretensão de esgotar o talento do grande mestre, mas responder aos poemas de Artur que brilham, soltam faíscas,
incendeiam-se em erotismo e garras enigmáticas. Ele transcende regras, inventa
palavras, enlouquece verbos. E as relações estabelecidas revelam a desordem dos
sonhos na concretude harmônica de suas palavras.
A aventura erótica não se despede de seu olhar
político. Situado fenomenologicamente no mundo, e transverso nele, Artur profana o sagrado com suas
invenções transgressoras. Reinventa a magia e decreta uma nova vida para que o
mundo não seja habitado somente pelos imbecis. Dança no universo, com a palavra
fluída, imprevistos pitorescos, mordidas e grunhidos. Reaparece no meio de um
cacto espinhoso, mas é absurdamente capaz de ofertar a beleza da flor.
Contemporâneo e primitivo se aliam, vencem os abismos como se ao comerem as
palavras monótonas, pudessem renascer por meio da antropofagia infinita de barulhos
e silêncios. O sangue coagulado jorra, as cavernas se dissolvem e é provável
que poucos compreendam a beleza que daí se origina.
Nos labirintos de suas palavras, resplandece o
guerreiro devorador, embriagado, quase descendo ao seu próprio inferno. Emana
seu fogo, na ardência de sexo e simultaneamente na carícia do amor. Pedras
frias se aquecem, coram com o tom devasso que colore a mais bela das
pornofonias. Marquês de Sade sente inveja por não ser o único déspota das
palavras sensuais. E os poemas de Artur
reflorescem, exalam odor como desejos secretos e risos que ecoam no
infinito.
não fosse essa alga
queimando em tua coxa ou se fosse e já soubesse mar o nome do teu macho o amor
em ti consumiria (jura
secreta 5)
De repente um cavalo selvagem cavalga na relva
úmida, como se o orvalho da manhã pudesse revelar o fogo roubado das pinturas
rupestres. Ao som de tambores, suas palavras se tornam arte em si, como se
fossem desenhos projetados em um fantástico mundo vertiginoso. Seres encantados
surgem das águas originários de sentimento, abraçadas nas pedras lisas,
rugosas, esverdeadas da terra. O fogo dança em vulcões e a metamorfose é
percebida em seus ares. Os elementos se definem como bestas, humanos, ou
segmentos da natureza como uma orquestra sinfônica que vai além da sonoridade.
Adentram sentidos polissêmicos e, neste momento, até o André Breton percebe o significado das palavras de Artur, pois a beleza é convulsiva e
crava no peito feito cicatriz.
e o que não soubesse do que foi escrito está cravado
em nós como cicatriz no corte (jura secreta 10)
Da violação do limite, do fruto proibido ou da
linguagem erótica, os poemas de Artur são orgasmos literários que oscilam entre
o sacro e o profano. Sua cultura, visão de mundo e inteligência possibilitam ir
além da pura emoção sentimental, evocando a liberdade para que a terra
asfixiada grite pela esperança. Artur
comunga com outros seres a solidariedade da Terra, ainda que por vezes, seja
devastador em denunciar disparidades, mas é habilidoso em anunciar acalentos. A
palavra poética desfruta fronteiras, e Roland
Barthes diria que a história de Artur
é o seu tributo apaixonado que ele presta ao mundo para com ele se conciliar.
Em sua linguagem explosiva, provavelmente está a intensidade de sua paixão - um
amor perverso o suficiente para viciar em suas palavras, mas delicado o
bastante para dar gênese ao mundo enfeitiçado pela habilidade de sua
linguagem.
A essência deste perfume parece estar refletida
num espelho, pois se as linguagens podem incluir também o silêncio, as palavras
de Artur soam como uma melodia.
Projetada numa tela, a pintura erótica torna-se sublime e para além de
escrevê-las, ele vive suas linguagens. Esta talvez seja a diferença de Artur com tantos outros poetas: a sua
capacidade de transcender a tradição medíocre para viver um intenso de mistério
de sua poética. Ele não duvida de suas palavras, nem as censura para não
quebrar seu encanto, mas devora em seu ser na imaginação e no poder de sua
criação. Criador e criatura se misturam, zombam da vida, gargalham da
obviedade. Põem-se em movimento na dança estrelas que iluminam a palavra.
Os fragmentos poéticos são misteriosos de
propósito, uma cortina mal fechada assinala que o palco pode ser visto, porém
não em sua totalidade. Disso resulta a sedução para que ele continue
escrevendo, numa manifestação enigmática do poder surrealista em nos alertar
sobre nossas incompletudes fenomenológicas. O imperfeito é o sentido da
fascinação, diria Barthes em seus fragmentos de um discurso amoroso. E a
poética de Artur não representa
ressurreição, nem logro, senão nossos desejos. O prazer do texto pode revelar o
prazer do autor, mas não necessariamente do leitor. Mas Artur lança-se nesta dialética do desejo, permitindo um jogo
sensual que o espaço seja dado e que a oportunidade do prazer seja saciada como
se fosse um "kama sutra
poético" para além do prazer corporal. Esta duplicidade semiológica
pode ser compreendida como subversiva da gramática engessada - o que, em
realidade, torna seus textos mais brilhantes. Não pela destruição da erudição,
mas pela abertura da fenda, para que a fruição da linguagem seja bandeira
cultural da liberdade.
E a sua liberdade projeta-se num horizonte onde
a dimensão sócio-ambiental é freqüentemente presente. É uma poesia universal de
representações urbanas e rurais, de flora, fauna e fontes de praças públicas.
Desacralizando o “normal previsível”,
borda em sua costura de mosaicos, esquinas e passaredos.
A poética das Juras Secretas opõem-se a instância pretérita numa espiral de
presente com futuro. Metafisicamente, desliga-se do momento agonizante e os
olhos do poeta não se cansam, ainda que a paisagem queira cansá-los. Seu toque
lembra o neoconcretismo, por vezes, cuja aparição na semana da arte moderna
mexeu com os mais tradicionais versos da literatura ordinária. Mas sua
temporalidade vence Chronos, na
denúncia de um calendário tirano ao anúncio de Kairós, também senhor do tempo, mas que media pelos ritmos do
coração.
20 horas 20 noites 20 anos 20 dias até quando esperaria... até quando
alguém percebesse que mesmo matando o amor o amor não morreria. (jura
secreta 51)
É óbvio que a materialidade da linguagem, sua
prosódia e seu léxico se mantêm no texto. Mas foge das estruturas engessadas do
arrombo repetitivo, florescendo em neologismos verossímeis e ritmos cardíacos.
Amiúde, são palavras jorradas em potente cultura significante. No chão
dialogante, este poeta desestabiliza a normalidade com suas criações.
por que te amo e amor não tem pele nome ou
sobrenome não adianta chamar que ele não vem quando se quer porque tem seus
próprios códigos e segredos mas não tenha medo pode sangrar pode doer e ferir
fundo mas é razão de estar no mundo nem que seja por segundo por um beijo mesmo
breve por que te amo no sol no sal no mar na neve. (jura secreta 34)
ARTUR
GOMES é, para mim, um grande
relato de seu próprio devir, que sabe poetizar a partir de seu vivido. E por
isso, enfeitiça.
Michèle Sato
– Bióloga, pesquisadora na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul.
Jura Secreta
não fosse essa jura secreta
mesmo se fosse e eu não falasse
com esse punhal de prata
o sal sob o teu vestido
o sangue no fluxo sagrado
sem nenhum segredo
esse relógio apontado pra lua
não fosse essa jura secreta
mesmo se fosse eu não dissesse
essa ostra no mar das tuas pernas
como um conto do Marquês de Sade
no silêncio logo depois do susto
a língua escava entre os dentes
a palavra nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas vezes muito prosa
outras vezes muito cínica
tudo o que quero conhecer:
a pele do teu nome
a segunda pele o sobrenome
no que posso no que quero
a pele em flor a flor da pele
a palavra dandi em corpo nua
a língua em fogo a língua crua
a língua nova a língua lua
fulinaímica/sagaranagem
palavra texto palavra imagem
quando no céu da tua boca
a língua viva se transmuta na viagem
entre tuas pernas
o beijo no instante trágico
a língua sem que ninguém soubesse
no silêncio como susto mágico
e esse relógio sádico
como um Marquês de Sade
fosse essa jura sagrada
como uma boda de sangue
às 5 horas da tarde
a cara triste da morte
faca de dois gumes
naquela nova granada
e Federico Garcia Lorca
naquela noite de Espanha
não escrevesse mais nada
Jura secreta 4
a menina dos meus olhos
com os nervos à flor da pele
brinca de bem-me-quer
ela inda pensa que é menina
mas já é quase uma mulher
queimando em tua coxa
ou se fosse e já soubesse
mar o nome do teu macho
o amor em ti consumiria
Olga Savary
no sumidouro dos meus dias
o couro cru
na antropofágica erótica
carne viva
tua paixão em mim
Jura secreta 6
o que passou não ficará já foi
a menina dos meus olhos
roubou a tua menina
e levou para festa do boi
fosse um Salgado Maranhão
nosso batismo de fogo
25 de março
e o morro querosene em chamas
no canto pro tempo nascer
e o amor que a gente faria
o sol acabou de fazer
fosse Sampa uma cidade
ou se não fosse não importa
essa cidade me transporta
me transborda me alucina
me invade inter/fere na retina
com sua cruel beleza
como Oswald de Andrade
e sua realidade
como Mário de Andrade
e sua delicadeza
Jura Secreta 8
artefato (poema sujo)
numa cidade abstrata
sem sentido ou significado
matadouro é arte concreta
veracidade é pecado
pago com pena de morte
esta máquina de escrever
fotografada em Itaguara
como um poema de Lorca
escrito em Nova Granada
cravado em Araraquara
você não sabe onde está
você não sabe onde é
você não sabe de quem foi
este punhal na metáfora
que sangra a carne do boi
Jura secreta 9
não fosse o teu amor
o meu conforto
e eu teu anjo torto
meu amor como seria
se a jura secreta
não fosse mais que um poema
e se eu não te amasse
como Glauber no cinema
o que tenho aqui
no corpo em transe
:
a quem daria?
Jura secreta 10
fosse o que eu quisesse
apenas um beijo roubado em tua boca
dentro do poema nada cabe
nem o que sei nem o que não se sabe
e o que não soubesse
do que foi escrito
está cravado em nós
como cicatriz no corte
entre uma palavra e outra
do que não dissesse
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